Todos nós assistimos o que se passava na China e, depois, na Itália de camarote. Impressionados sim com os números, mas ainda com a sensação de um problema muito distante. Só que não demorou muito para o Coronavírus contaminar o mundo inteiro, deixando de ser um desafio apenas para os outros e se tornando um dever de todos nós.
Ou pelo menos é assim que deveríamos pensar.
Porém, a falta de consciência coletiva e o pensamento de que “essas coisas só acontecem com os outros” acabou sendo o principal aliado do Covid-19. Que viu nessa nossa atitude seu par perfeito para multiplicar seus números pelo mundo inteiro e crescer como uma pandemia, até então, jamais vivenciada neste século.
Aqui na França, o que eu vi desde o primeiro discurso do presidente pedindo a colaboração das pessoas e até agora, com a imposição do confinamento, foi a atitude de “adolescente rebelde”, que mesmo os pais avisando, preferem acreditar (ou fingir) que não é sério e que nada vai acontecer.
A grande diferença é que, dessa vez, essa “rebeldia” não traz riscos apenas para o próprio indivíduo, mas sim para toda a sociedade. Estamos em guerra, segundo o próprio presidente francês.
Coronavírus na França
Hoje, 22 de março de 2020, segundo os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde Francesa, existem mais de 16 mil pessoas confirmadas contaminadas pelo novo coronavírus. Além de 674 mortes registradas.
Porém, estima-se que o número de contaminados seja muito maior, já que a estratégia utilizada pelo país é de não realizar o teste em massa. Mesmo quando a pessoa apresenta sintomas leves compatíveis com o Covid-19.
Todos os dias, a televisão tem retratado a dificuldade dos hospitais, dos médicos e das enfermeiras que tratam diretamente os pacientes. Todos os dias a informação é clara: precisamos frear a propagação do vírus para evitar que o sistema de saúde chegue ao seu limite, deixando de ser capaz de tratar os casos graves.
E mesmo assim, o que vemos? Pessoas pouco preocupadas, saindo de casa, arrumando desculpas, que se negam em respeitar o pedido de confinamento. Seria essa só uma atitude rebelde dos franceses como eu chamei aqui no texto ou a perfeita confirmação de que, não importa o país, a falta de empatia e pensamento coletivo é um problema sério da nossa sociedade? Vamos voltar nessa reflexão daqui a pouco.
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Como chegamos até o confinamento
No dia 12 de março, Emmanuel Macron fez o seu primeiro discurso oficial sobre o coronavírus. Nesse momento ele não impôs nada, mas pediu a colaboração das pessoas para que evitassem ao máximo o contato social e lugares com aglomerações. Além de fechar, oficialmente, escolas e universidades.
Mesmo com o número de casos aumentando significativamente a cada dia e seguindo as mesmas previsões do que vimos na Itália, o presidente preferiu um discurso amigável, evitando palavras negativas ou autoritárias. Pedindo a colaboração e o bom-senso de todos.
O que não aconteceu em momento algum.
A sexta-feira foi marcada por bares cheios, feiras lotadas e a vida que seguia como se “nada estivesse acontecendo”. Foi, então, que, no sábado, 14 de março, o Primeiro Ministro da França, Édouard Philippe, anunciou o fechamento de todos os bares e restaurantes, além de todos os comércios que não fossem “essenciais à vida”.
Além disso, o governo reforçou o pedido para que as pessoas ficassem em casa, evitando lugares cheios e o contato social ao máximo.
Enquanto o cenário se tornava cada vez mais dramático diante dos números de vítimas que o coronavírus fazia na França e em todo o mundo, o que vimos dos franceses mais uma vez foi a atitude rebelde.
No próprio sábado, antes da meia-noite (horário oficial em que todos os estabelecimentos seriam fechados) vimos os bares e restaurantes de Paris lotados, as festas continuando e a ideia de que esse vírus “só atingia pessoas idosas ou com o sistema imunológico defasado”.
No domingo, dia de 15 de março, um dia lindo de sol, depois de meses cinzas, o registro em Paris foi de mercados de rua lotados, parques cheios e o canal do Sena cheio de pessoas passando o domingo ao ar livre, mais uma vez como se nada estivesse acontecendo.
O início
Foi, então, no dia 16 de março, que Macron fez seu segundo pronunciamento. Dessa vez, informando a medida de confinamento e repetindo inúmeras vezes que estamos em “guerra”. Durante seu discurso, o presidente pediu aos franceses:
“Faisons preuve d’esprit solidaire et de sens des responsabilités” – Façamos prova de um espírito solidário e de um senso de responsabilidade.
Estava proibido sair de casa, com exceção de alguns casos. Passou a ser necessário andar com uma declaração que especifica o motivo pelo qual você está nas ruas. Sendo as únicas possibilidades as seguintes:
- Trabalho que não pode ser feito de casa, com a assinatura do empregador.
- Comprar comida ou remédios.
- Auxiliar pessoas idosas que dependem de você ou então crianças.
- Passear com animal de estimação ou uma volta rápida para exercício.
E mesmo diante das restrições e sob a pena de uma multa de 135 euros. Ainda assim, vemos os jornais relatarem a falta de responsabilidade, a indisciplina e a dificuldade das pessoas em colaborarem com as regras.
No bairro em que moro, nunca vi tantos cachorros serem levados para passear. Da minha janela, consigo ver a entrada de um mercado, é possível constatar todos os dias pessoas saindo com um pacote de bolacha ou apenas um chocolate na mão.
Sem contar que o número de pessoas preocupadas em fazer exercício físico nunca deve ter sido tão alto como nesses dias de confinamento. Enquanto um corredor profissional francês que se prepara para os jogos olímpicos em Tóquio afirma não sair de casa.
As falhas do governo
Enquanto o coronavírus se espalhava ainda lentamente pelo mundo, diversos médicos aqui na França diziam que ele não passava de uma “grippette” (gripe fraca), apresentando baixas taxas de mortalidade e baixo risco a população mais jovem.
O discurso de “não se desesperem”, “não é nada grave” foi, ao meu ver, uma grande falha do governo francês. O que levou a população a não ver o Covid-19 como uma real ameaça. O próprio Macron e sua esposa foram, no dia 6 de março, ao teatro assistir uma peça, afirmando que “não existia razão para pânico, que a vida deveria seguir normal”.
Porém, uma semana depois disso, ele fez seu primeiro pronunciamento oficial. Agora com um discurso bem diferente, pedindo para a população ficar em casa.
Além disso, o governo francês mesmo fechando escolas, bares e restaurantes e diante de uma epidemia que não parava de aumentar, manteve o primeiro turno das eleições para prefeito que aconteceram no dia 15 de março, apenas um dia antes do anúncio de confinamento. Essa postura gerou diversos questionamentos sobre as medidas de segurança.
Todos esses fatos seguidos, na minha opinião, retratam uma falha de comunicação e uma postura que pode ter influenciado diretamente a falta de disciplina da população diante das regras.
O problema da liberdade
A China conseguiu controlar a epidemia do coronavírus em seu território depois de aplicar regras severas de confinamento. E, hoje, enquanto os outros países do mundo estão a caminho do pico de números de casos, a China se aproxima novamente de uma “vida normal”.
Aqui na França, o confinamento está previsto para durar 15 dias, podendo, muito provavelmente, ser prorrogado. E a televisão ou mesmo pessoas famosas não deixam de pedir “restez chez vous” (fiquem em casa). Afinal, quanto mais colaborarmos para diminuir o número de transmissões, mais rápido podemos nos ver “livres” desse cenário inédito em todo o mundo.
Mas, então porque ainda assim as pessoas preferem quebrar as regras, sair sem necessidade e até pagar uma multa? É difícil responder, ainda mais não sendo uma especialista em comportamento humano. Mas quero compartilhar algumas possibilidades, deixando claro que minha opinião é com base na observação e não na ciência.
1 – a liberdade
Um dos primeiros pontos para mim da eficiência do confinamento na China é a diferença do entendimento da palavra liberdade. Lá, eles não podem criticar abertamente o governo ou, talvez, escrever um texto como esse aqui.
Já em países como a França ou mesmo o Brasil, nós temos a liberdade de ir e vir, de reclamar, de exigir nossos direitos. E depois de conviver com diversos chineses por aqui, é nítido que eles possuem disciplina, se não livremente, imposta.
O que para combater uma epidemia que depende da consciência e colaboração da população acaba sendo um ponto positivo para eles.
Aproveito esse momento para deixar uma reflexão: o quanto sabemos lidar com a liberdade que temos? A qual só nos damos conta quando ela é tirada de nós, mesmo que temporariamente.
Nossa liberdade não só nos permite viver da forma como bem entendemos. Mas, também, em fazer escolhas conscientes, como evitar lugares cheios quando pedido, sem que isso precise se tornar uma imposição.
2 – o coletivo
Nossa vida é nossa e podemos fazer o que queremos com ela, até continuar nossos hábitos que sabemos que nos fazem mal, por exemplo. Porém, quando as nossas atitudes deixam de afetar apenas a nós mesmo e passam a colocar em risco outras pessoas, é necessário desenvolver uma consciência coletiva.
Deixar de olhar e se preocupar apenas com os seus próprios problemas e ter empatia pela vida do outro. Nesse momento de crise sanitária mundial, é exatamente disso que precisamos e o que ainda não vemos, infelizmente.
Quando alguém quebra as regras de confinamento ou não a leva a sério e sai “apenas para dar uma voltinha” ela passa a colocar em risco não só a sua própria vida, mas de toda a sociedade.
Já que é possível contaminar outras pessoas pelo coronavírus mesmo não tendo os sintomas da doença. E o mais incrível é que isso inclui sua própria família e pessoas que você ama. E mesmo assim preferimos arriscar.
A falta da consciência coletiva também se apresenta quando vamos ao supermercado e compramos trinta pacotes de papel higiênico e não deixamos nada para o outro. Esse cenário foi visto aqui na França, mesmo com o governo assegurando que não há risco de faltar nada.
E eu sei que ele também está acontecendo em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.
3 – o só com os outros
Por último, gostaria de citar o que percebi muito na fala das pessoas entrevistadas pelos jornais. Aquela velha ideia de que “isso só acontece com outros”.
Pelo coronavírus ser um “inimigo invisível”, fica difícil para as pessoas se darem conta que o perigo não bate apenas na porta do vizinho, mas em qualquer uma, inclusive na sua.
Essa percepção de “só com os outros”, “só com os idosos” nos tira a responsabilidade de tomarmos atitudes mesmo contra o nosso gosto. Se torna a desculpa perfeita para dar uma saidinha só dessa vez.
Além disso, um ponto importante que foi mudando com o tempo no discurso dos médicos e do governo aqui na França é que o coronavírus é sim mais letal aos idosos. Porém, isso não significa que jovens saudáveis também não possam desenvolver o quadro mais grave do vírus.
Inclusive, o diretor geral da saúde divulgou há alguns dias que 50% dos casos em reanimação são de pessoas com menos de 60 anos.
Para terminar
Se refletirmos, muitas vezes já nos confinamos por própria escolha. Quando evitamos as conversas para ficar no celular, quando preferimos as amizades online e por aí vai. E isso, sabemos bem que é uma tendência mundial.
E, então, porque quando a melhora de um cenário de crise, como a do coronavírus, depende do confinamento somos tão rebeldes a ideia?
Não poder sair de casa é um saco. Eu sei. E estou vivendo isso desde o dia 16. Dá vontade de tomar um ar fresco no parque? Dá sim. De sair para bater perna pela cidade? Dá sim. De encontrar pessoas em um bar? Dá sim.
Mas precisamos lembrar que isso é temporário e necessário para evitar os dados horríveis que são anunciados todos os dias pelas autoridades. Vamos aproveitar esse momento para nos aproximar de nós mesmos e de quem amamos.
Sem dúvidas, seria difícil imaginar que algum dia o mundo poderia parar desse jeito. Mas, de toda crise, podemos tirar aprendizados, individuais e coletivos.
Chegou a hora de praticarmos, aqui na França e em todo o mundo, nossa liberdade (Liberté) consciente, nossa fraternidade (Fraternité) mesmo por quem não conhecemos e a igualdade (Égalité) ajudando a preservar os outros, independente de quem sejam.
Espero que possamos vencer essa guerra o mais breve possível, praticando nossa rebeldia apenas em prol de melhorias.
Até a próxima! 🙏